Leis de comunicação e desafios do audiovisual no continente
12/11/2009 às 10:16 | Publicado em Uncategorized | Deixe um comentárioTags: artigos
DOCLATXXI
2do encuentro de documentalistas latinoamericanos y del caribe siglo XXI
Guayaquil, Ecuador
29/10/2009
Conferencia Magistral
Leis de comunicação e desafios do audiovisual no continente
Orlando Senna*
O primeiro instrumento regulatório referente ao Cinema foi promulgado pelo governo dos Estados Unidos em 1906, há mais de um século. Em 1906 o Cinema tinha apenas dez anos de idade, as ficções eram chamadas “filmes narrativos” e os documertários “filmes naturais”. Em 1906 os filmes passaram a ter duração de uma hora, foi exibida a primeira animação e o número de espectadores nos Estados Unidos chegou a 25 milhões. A maioria desses espectadores, pagando entre cinco e dez centavos de dólar a entrada, dava preferência aos filmes franceses da Pathé Frères, a empresa européia que fazia e distribuia filmes em vários países e também fabricava câmeras e projetores. Os filmes da Pathé ocupavam 60% do mercado exibidor dos Estados Unidos. Essa primeira lei tinha como alvo expulsar a Pathé do mercado cinematográfico americano. E conseguiu.
Corte para 1974, no Brasil, ditadura militar, sendo presidente o general Geisel. Aprova-se um decreto-lei aumentando o imposto que os filmes estrangeiros pagavam para entrar no País. O imposto era ridículo, quase nada, e o aumento também não chegava a uma quantia significativa. O presidente da Motion Picture Association, Jack Valenti, foi ao Brasil, reuniu-se com a equipe econômica do governo e disse que os brasileiros podiam negociar seu mercado cinematográfico nacional, tinham esse direito, mas que, diante de uma decisão como essa, os Estados Unidos também tinham direito de incluir na negociação a suspensão das importações americanas de café, açúcar, cacau, têxteis e calçados, as maiores exportações brasileiras da época. O governo brasileiro desistiu de aplicar a lei.
Às vezes os metódos de coerção e ameaças de retaliação por parte dos Estados Unidos, para que não controlemos nossos mercados nacionais, são perversamente bizarros, obedecem a estratégias que parecem inspirar-se nos filmes de Hollywood. Outro episódio no Brasil: em 1975 promulgou-se a Lei do Curta, um dispositivo que obrigava a exibição de um curta-metragem brasileiro antes de qualquer longa-metragem estrangeiro, em todas as salas do país. Uns poucos centavos do custo da entrada eram destinados aos produtores dos curta-metragens, um pagamento ínfimo, mas cuja soma seria importante para o fomento desse tipo de filme. A iniciativa foi muito exitosa, o público aplaudia os curtas. Desta vez a Motion Picture não conseguiu anular a lei e foi por outros caminhos: associou-se aos exibidores e, através deles, passou a produzir e exibir curta-metragens de péssima qualidade, propositadamente de péssima qualidade, agressivamente ruins. Ocuparam as salas com esse lixo, o público passou a rechaçar os filmes, os exibidores enviaram milhares de ações judiciais contra o dispositivo e a lei foi inviabilizada, segundo a terminologia dos juristas. Os curtas brasileiros deixaram de ser exibidos. A Lei do Curta ainda existe e está em vigor, mas não é cumprida.
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A normatização dos mercados audiovisuais nacionais é uma das maiores dificuldades, se não a maior, dos estados emergentes, dos estados periféricos e mesmo dos estados industrializados da Europa e da Ásia — como demonstram as perigosas medidas adotadas recentemente pelo governo francês com relação à publicidade na televisão pública, ou o recuo da Coréia do Sul que estabeleceu uma cota de tela para o filme nacional em 50% e teve que recuar drasticamente sob pressão de Washington.
Ao mesmo tempo, neste momento todos os países estão tratando de atualizar e ampliar suas legislações audiovisuais ou de criá-las, já que muito deles, inclusive na América Latina e no Caribe, não as tinham. Esses nossos países que só agora tratam do assunto, um século depois dos Estados Unidos normatizarem a expulsão dos filmes franceses de seu território, estão atuando timidamente, alguns ainda estão tratando de legislar sobre o conceito ou a atividade Cinema em uma época de convergências, onde cinema, televisão, internet, telefonia, duplicação em discos e pen drives, e comunicação social compõem um conjunto, são interdependentes.
As políticas públicas audiovisuais só podem ser entendidas e praticadas atualmente no âmbito mais amplo e mais complexo das políticas de comunicação e estas, por sua vez, no âmbito, na moldura das políticas culturais. São princípios e normas que devem orientar o comportamento dos sistemas de comunicação. Mais precisamente, o comportamento da comunicação social enquanto elemento super importante, essencial, da diversidade cultural. Políticas públicas que englobem todas as dimensões da cultura: a econômica (regras de competição, financiamento, geração de empregos, industrialização), a política (qualidade democrática da elaboração e implantação das normas), a social (acesso, uso, entendimento cidadão dos bens comunicativos) e a dimensão simbólica, a razão maior dessa guerra da comunicação, o poder de penetração psicológica da linguagem audiovisual, de interferir em nosso imaginário, sua capacidade de induzir em nossos espíritos valores ideológicos, religiosos e identitários.
Quando mencionei a dimensão simbólica, naturalmente me referi ao audiovisual, o mais poderoso indutor e difusor cultural. A esse aspecto vem se somar o fato de que a comunicação, tendo na ponta a expressão e a indústria audiovisuais, será a maior economia do século XXI, a economia decisiva para o equilíbrio ou desequilíbrio interno dos estados e para a condição que cada estado, cada país, cada cultura ocupará nos desdobramentos da globalização. Uma questão de geração de empregos, distribuição de renda, qualidade de vida e poder nacional. Ou seja, a batalha que estamos travando desde as primeiras décadas do século passado, pelo direito de exibir nossas obras audiovisuais em nossos próprios países e pela diversidade audiovisual mundial, se torna mais difícil e mais dura, mais brutal, no século XXI. Apesar das novas tecnologias, que podem atuar a nosso favor, apesar do crescimento de alguns países emergentes, da formação de novos blocos econômicos, da união BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China), o enfrentamento com o cinema hegemônico será ainda mais difícil, já que os interesses em jogo, que já eram formidáveis, gigantescos, agora são vitais, fundamentais, para o poder interno e externo dos estados.
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É nesse cenário que os países latino-americanos e caribenhos tentam impor regras para seus mercados audiovisuais nacionais. Colombia tem uma Ley del Cine desde 2003, sempre com problemas com o Ministério da Fazenda. Venezuela tem uma lei de 2005 e uma política agressiva de formação de infraestrutura com a Villa del Cine, a distribuidora Amazonia Films. Equador criou um Conselho Nacional de Cinema e está no Congresso um projeto de lei que contempla fomentos ao cinema. Bolívia fez uma reforma em antiga Ley de Cine em 2006. Uruguai aprovou uma Ley de la Cinematografía em 2008. Paraguai está em campanha neste momento para aprovar a sua. Quase todos os países aqui representados estão se ocupando do assunto, com projetos e leis de distintas qualidades, mais ou menos adequados à nova era audiovisual que estamos começando a viver.
Vamos nos deter nas três maiores cinematografias da região: Brasil, Argentina e México. O México é o país mais duramente castigado pelas estratégias do complexo politico-militar-audiovisual dos Estados Unidos. Na década de 1950 a produção mexicana era vista na maioría dos países latino-americanos, na Europa e também nos Estados Unidos. Chegou a produzir cem filmes longos anuais e, em 2007, na melhor performance dos últimos anos, produziu 42. As políticas neoliberais impostas pelos Estados Unidos levaram a cinematografia mexicana a esta situação. Existe uma Lei Federal de Cinematografia, de 1992, que não responde minimamente às necessidades da atividade audiovisual do México — nem impede o avanço progressivo de Hollywood sobre suas telas de cinema e televisão.
Conto um episódio que muitos de vocês conhecem, um exemplo de como o México está indefeso. Em 2003 o Congresso mexicano aprovou um dispositivo determinando que, sobre cada ingresso de cinema vendido no país, seria cobrado um peso extra destinado a um fundo de fomento à produção de filmes nacionais. Imediatamente o presidente da Motion Picture enviou uma carta ao presidente Vicente Fox com ameaças de retaliação econômica. Literalmente, escreveu: “esta classe de imposição só pode causar dano a um importante setor cultural e econômico, e urge examinar as repercussões negativas do imposto nos investimentos e atividades de exibição, produção e distribuição dos filmes mexicanos e estrangeiros no México.” Apesar da reação dos produtores e cineastas mexicanos pedindo coragem ao presidente Fox e da solidariedade de milhares de pessoas de todo o mundo, o máximo dirigente mexicano se calou, a lei foi inviabilizada. A Televisa, maior consórcio privado de comunicação do México, apoiou a Motion Picture.
O Congresso argentino aprovou há pouco, há três semanas, uma Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual. A nova lei impede a formação de monopólios de comunicação, reserva uma parte das licenças de rádio e TV para emissoras públicas e emissoras sem fins lucrativos, determina concursos para outorga de licenças de TV e audiências públicas para renovação dessas licenças, determina a emissão televisiva de acontecimentos de interesse público ao vivo e gratuitamente, cotas de produção nacional na transmissão televisiva, cota de tela para o cinema nacional. É uma norma contemporânea, adequada aos novos tempos, avança em direção a uma comunicação social democrática. Demonizada pelo grupo de comunicação Clarin (a mais poderosa holding de comunicação do país) e pelos porta-vozes dos interesses dos Estados Unidos, a lei foi aprovada pelo Congresso graças ao poder politico de Cristina e Néstor Kirchner e de uma pressão popular que levou 40 mil pessoas a se manifestarem diante do Senado. A oposição e a grande mídia estão dizendo que foi uma “imposição” dos Kirchners, como podem ver nos jornais argentinos e equatorianos de hoje. Acontece que o Congresso será modificado agora no dia 10 de dezembro (renovação da metade dos membros da Câmara de Deputados e um terço da Câmara de Senadores). Menciono essa situação argentina para chamar a atenção para o fato de que a batalha pela Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual apenas começou, apesar da aprovação pelo Congresso. Indicios: o ex-presidente Eduardo Duhalde prometeu que o novo Congresso, no qual os Kirchners não têm maioria, anulará a lei; o grupo Clarín vai na mesma direção e atacará fortemente, argumentando violação de princípios constitucionais e da liberdade de expressão e deflagrando uma campanha de desmoralização da presidente Cristina Kirchner.
No Brasil estive pessoalmente no olho do furacão de um desses embates. Como Secretário Nacional do Audiovisual, com apoio irrestrito do ministro de Cultura Gilberto Gil e do presidente Lula, liderei uma tentativa de elaborar um marco regulatório para a atividade audiovisual em 2004 e 2005. A proposta, aberta a correções e ajustes, passaria por análises do setor audiovisual, de juristas, de variados segmentos do governo e por uma ampla consulta pública antes de ser enviado ao Congresso. O primeiro governo Lula avançou significativamente na área audiovisual, desenvolvendo políticas públicas que resultaram em um aumento de 150% na produção de filmes e programas de televisão e de 100% na ocupação do mercado nacional por nossos filmes (em 2002 essa ocupação era de 6% e nos anos seguintes manteve uma média de 12%). Democratizou para todas as regiões do País os recursos e as ações federais, resultando na criação de centenas de cineclubes, festivais, centros de produção e difusão e o surgimento de uma geração excepcional de cineastas, roteiristas, fotógrafos, atores atuando em todos os quadrantes do Brasil, a mais brilhante dos últimos quarenta anos. Por primeira vez foi criada e executada uma política audiovisual abrangente, envolvendo todos os aspectos da atividade. Essa situação foi deflagrada pela elevação da cultura e do audiovisual a temas estratégicos de estado, por decisão e anúncio pessoal do presidente da República.
(Chamo a atenção para o fato de que as questões audiovisuais só encontram soluções nacionais a partir de decisões e ações do máximo dirigente do país. Sabemos que todos os avanços que tivemos no continente, no que se refere a isto, foram pensados e encaminhados pelo setor, em geral pelos cineastas, mas só foram materializadas a partir da vontade política do máximo dirigente. E para que essa vontade política se materialize, tal dirigente tem de ter um grande poder politico, respaldo da sociedade e muita coragem. É assim porque ações relacionadas ao assunto geram respostas que incidem em outros interesses do país, em outros aspectos da economia do país e em retaliações que poucos presidentes, reis ou primeiros ministros podem resistir.)
O presidente Lula, com seu enorme prestígio, conduziu ações audioviduais de grande importância, mas quando seu governo anunciou a intenção de normatizar a atividade, de garantir parcelas significativas do mercado audiovisual para a produção nacional, com a meta de chegar a uma ocupação de 50%, foi bombardeado com uma campanha midiática de grosso calibre. Como dizia, lançamos a proposta do marco regulatório, sugerindo a criação de uma agência nacional do audiovisual, a Ancinav, em substituição à Agência Nacional do Cinema, a Ancine, que centralizaria a regulamentação do setor de maneira abrangente, relacionando as atividades do cinema, da televisão, das companhias telefônicas. Ou seja, desde a realização de curta-metragens até os novos serviços de distribuição de conteúdos oferecidos pelas operadoras de telecomunicações. Além da ocupação de 50% do mercado, progressivamente, o outro grande objetivo era que a exploração de obras audiovisuais estrangeiras no Brasil resultasse em recursos para o fomento da atividade audiovisual por empresas nacionais, visando equiparar as condições de competição.
A proposta foi lançada para discussão pública e, no dia seguinte, a Rede Globo e toda a holding de comunicação Globo, apresentou-a como se fosse um projeto de lei que o presidente estava enviando para o Congresso e atacou virulentamente o presidente da República, o ministro da Cultura e a autoridade audiovisual do país. Tinha inicio a ruidosa polêmica da Ancinav, conhecida de todos os brasileiros que aqui estão. As Majors, as sete maiores distribuidoras de cinema do mundo, juntaram seu poder de fogo à campanha de desmoralização da proposta do governo, cooptando produtores e empresas nacionais que tinham relações de negócios com ela. A ação do governo teve o apoio da grande maioria das associações e sindicatos do setor, menos desses produtores e empresas, que conformaram uma associação à parte.
Um aspecto interessante nessa batalha (há um documentário intitulado A batalha da Ancinav, de Noilton Nunes) é que a proposta do governo interessava às empresas telefônicas, que lutam para ter direito não apenas à distribuição de conteúdos mas também à produção e são mais poderosas, economicamente, que as empresas de radiodifusão. Houve um momento nas discussões bilaterais do governo com a Globo e do governo com as telefônicas, em que a televisão abriria uma linha de entendimento se a lei proibisse a produção de conteúdos pelas telefônicas, enquanto as telefônicas pediam uma drástica regulamentação para as televisões, para a radiodifusão.
Embora a proposta visasse a organização econômica do setor, foi acusada de ter a intenção de controlar o conteúdo, a criação, no velho estilo das censuras ditatoriais. A pressão midiática e política foi tão intensa que passou a ameaçar a governabilidade do presidente Lula, então no início de governo. O staff presidencial considerou que o risco politico era grande demais para aquele momento e optou pelo que considerou uma “saída honrosa”.
A decisão presidencial que interrompeu a campanha midiática de desmoralização foi a seguinte: não criar a Ancinav, a grande agência reguladora; potencializar a Agência Nacional de Cinema como instrumento de regulação e fiscalização; nomear uma comissão ministerial para elaborar um anteprojeto para uma Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa. E assim foi feito. No que se refere à Ancine, a estratégia está funcionando, pouco a pouco a agência avança na regulação do mercado. No que se refere à Lei Geral, há uma estagnação, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República me informou que o assunto voltará à tona no momento politico adequado, o que significa que não será no último ano do governo Lula. Mas pode ser no novo governo, que será empossado no início de 2011, já que um novo elemento entrou com força nesse jogo: a digitalização da televisão, do cinema e do rádio no Brasil, que já está sendo implementada. O novo cenário que desenha a TV digital, com multiplicação de canais, supermassividade da informação e despertando a cobiça dos oligopólios e conglomerados midiáticos, exigirá novos níveis de regulação da atividade, ou o espaço comunicacional brasileiro se transformará em um teatro de guerra, em uma terra de ninguém.
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Apesar do tom sombrio dessas histórias, o controle ou o aumento do nível de controle de nossos mercados audiovisuais nacionais não é uma missão impossível. Lançando mão da dramaturgia, não se trata de uma tragédia, de uma história sem saída, sem solução. Trata-se de um drama, onde os obstáculos são tremendamente difíceis mas não são impossíveis de serem superados. Quando me refiro ao novo ator nesse jogo, a digitalização, estou apontando para uma mudança de condições, de situação, que pode atuar a nosso favor. Também o tempo e a história, uma possível reordenação do poder planetário nesse novo século, pode ser um elemento favorável. Se tenho algo a dizer sobre isso, como um veterano dessa luta, é que devemos exacerbar nossas inteligências na busca de caminhos novos, na busca das oportunidades que surgem em uma crise; e não devemos desistir nunca, nunca abandonar o campo de batalha, nunca perder a esperança e a energia — até o dia em que nós ou nossos filhos conseguirmos alcançar a democracia midiática.
* As matérias assinadas são de responsabilidade dos autores.
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